História de amor

Diz, se dizia, que em festa de Deus, o diabo entra sem convite e é o que se sucedeu com Caudino Rocha sem mesmo seu conhecimento. Moço novo, de muita fé e pouco canto, dado a lida com gado e sem espaço pra balburdia outras em sua vida, tinha o semblante pintado com o sol de muitas tardes e sério como deveria ser peão naquele tempo que peão não tirava foto. Levava a vida como devia ser: respirando lento, olhando o sol nascer e a lida começar, comendo na hora da fome e apertando o terço que ficava do lado da cama e que foi deixado por sua vózinha – Deus a tenha – quando ainda era um menino. Se sabia ou não rezar não sei dizer, que sua voz de reza era só movimento de lábios quando de alguma quermesse, sem som nem assombro, como criança dormindo e trocando conversas e tretas com os anjinhos do sono. O que eu sei, e que se soube na época, é que era moço direito, sem arrevelia com ninguém, nem má palavra a se dizer, de si ou pros outros e, certo como chuva molha e depois seca, veio ele, Caudino, a conhecer Rosa. Rosa era diferente. Tinha nome de flor, certo por certo, porque não se era de dar nome das outras partes das plantas à quem nascia, que menino saindo da barriga é tudo santo, não tem escrito na testa que diabruras vai fazer depois, mundo afora. Tinhosa, mulher arredia e certeira nas botinadas que dava em cachorro de rua e cuspia depois de fumar e de beber cachaça. Já tinha sido mulher de outros tantos e não temia nem o santo, nem o cão, nem leão, nem leitão. Era uma mulher mais homem que muito homem e não lhe era defeito, era só Rosa sendo o que era. Mas cada planta seu vaso, cada cria sua lida, e era de se ver que não tinha sossego no coração dela, porque a ninguém dava valor, nem carinho, era só rusga e fragelo, xingamento e malfeitia. Que eu já falei, como fala alto tamanco na madeira, que não havia de dar certo, dois corações em batidas tão desiguais, viola de borracha não toca moda, mas desandou dos dois, Caudino e Rosa, toparem em olhar e carne no fim duma festa na fazenda do Tião Tequero. E deve que foi, porque nem eu, nem eles de certo souberam, tanta mistura de diferença que acabaram por se atentarem um pelo outro que Caudino passou a ter o olhar besta de quem se apaixona e Rosa o olhar besta de quem se apaixona. E tudo é flor se o canteiro for bem cuidado e ela, demasiada andeira, passou a gostar de ser bem cuidada, porque Caudino era zeloso até com vaca brava que avançava, quanto mais com morena de cangote cheiroso? Apertava ela com força onde quer que fosse, e aprendeu a entortar o olho, cíume bravo e besta, pra ela e pra quem beirasse. Bebiam, ambos e ao mesmo tempo, uma guia que descia rasgante pela goela, tiragosto pra abrir o apetite, e era só, sem abuso, nem desatino. Era pra ter sido vida boa, ela sossegou, ela desendiretou no que é bom pro viver, nem tanta reza, nem tanto quieto. Continuou sendo o bom marido que a boa mulher merecia ter e ela achou o que não sabia existir, afeto puro feito orvalho, merecedor de seu sossego e carinho, vida de esfrega pra trás, cada um no cada um, eles os dois pros dois. E viveram assim, dias, meses, luas, sóis e não tinha defeito de um que o outro não ajeitasse ou aceitasse e não tinha qualidade que não fosse sorvida feito menino bebendo leite. Ama um o outro de amor, amor mesmo, sem perseverança de um, nem sossego do outro, amava um o outro porque era isto que tinha em um pra dar ao outro. Mas, tempo passou, sossego no mundo é coisa rara que dura pouco e veio de aparecer, pra tirar sossego até de mim, sem convite nem aviso, o mamulengo abestado de nome Rodovalho. Carestia de nome besta, pra começar. Ele, que ninguém sabia até então, tinha sido homem na vida da Rosa, a antiga Rosa. Foi homem dela lá pra banda de lá, longe pra mais de semanas, e por cruel destino, encargo atroz da vida, topou de fazer entrega na mesma cidadezinha que Rosa vivia e, cruel, cruel mesmo que me chega doer os olhos de lembrar tanta desventura, topou com Rosa e Caudino antes da janta na cantina, na hora do vira copo tradição dos dois, pra abrir o apetite, e só. E vendo Rodovalho a mimosa flor, achou-a que assim assim vivia como dantes, abraçada ao copo, indo de leva e vai com quem lhe desse nas ideias que, coitada, não tinha. E Rodovalho, sem tipo nem modo, chegou como quem chega dono, puxando cadeira e pegando no braço, porque, decerto viu Caudino, novo, baixo, forte mas sem arrombos, sem carcaça que lhe desse aprumo, forte sim, mas forte escondido debaixo do pano, sem se mostrar, nem aparecer, forte pra lida do campo, mas sem experiência de briga. E Caudino, sério e bom, viu a flor, sua rosa, tocada por tal afrontoso e logo levantou e raiou e mostrou o olho do ciúme que aprendeu a ter e xingou. O outro, Rodovalho, malandro de estrada, sem modo, não afinou nem arrengou. Levantou e apontou o dedo na cara do menino, coitado, que nem moço posso dele falar mais, e de dedo na venta do menino, falou nomes e tresnomes, abrindo as porteiras e portalhas de tudo que é enxofre que no inferno há. O que sei que vi, depois da ladainha plena, foi que de nada adiantou o aparta-afasta que, cada um mais doido, um de amor, outro de safadeza, tapa foi, tapa veio e só viram, que eu mesmo não vi nessa hora, a luz que acendeu na cantina quando a faca subiu no ar e desceu rápida veloz. Daí ouvi só um ganido, triste, cruel, falar assim, mas era o que eu ouvi, ganido de cachorro novo quando em fome, e olhei lá, deitado, feito uma criança que a mãe segura, Caudino nos braços da Rosa ajoelhada e o banho, sangue, tripas, a pele do pobre peão a ficar branca e triste, perdendo pra sempre o sol. Ela chorava feita mãe que perde o filho, agarrava nos braços, gritava socorro, mas qual quem que ia? Todo mundo empurrando Rodovalho pra rua, muitos sem nem ver direito o que havia, que assucedia e, certo por certo, tal qual meu olho ainda vê e ainda fala minha boca, ficou somente eu e o pobre casal que se desfazia nas tristezas das tragédias más da vida. Olhei ela, bela e feliz até minutos atrás, empapada do sangue de seu jovem peão, enquanto ele, num suspiro sem ar, num puxar o que não se pode mais ter, ergueu o braço, falo e repito, que isto eu vi com estes olhos que só verão terra em breve, e, braço erguido, tocou o braço e o rosto dela com tal gentileza, tal ternura que eu nem percebi a hora que chorei. E ela, sentindo aqueles dedos novos e gentis em sua pele, soube certeza por certo, que ele se ia pra nunca mais e era o último instantezinho que ela tinha com ele. O desespero e o pavor se afastou dela como se passasse um relâmpago no céu, não chorou mais, nem gritou socorro. Acho, acho mesmo, que nunca mais chorou nem falou palavra alguma, aquela coitada. Em silêncio, baixou o rosto e deu o beijo final e se despediu do amor pra sempre. E não, completar história assim, é chover no encardido, estraga mas não limpa, que eu falei dos três, mas o que falo mesmo é de mim: o amor, eu sei, existe e eu vi, nesta vida traiçoeira e ladina de estrada, só ali, naquela hora de dor, naquele beijo final. Ali eu me apercebi de mim e do que me faltava, faltou, faltará sempre.

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