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Despertar

Solitário, o telefone me desperta com seu som agudo. Se eu continuar deitado, perderei a hora. Não quero ir. Levanto-me rapidamente e todos os cômodos estão escuros e preciso ficar apertando diversas vezes o botão on-off do celular para ter um pouco de iluminação antes de chegar ao banheiro. Não quero acender as luzes da casa. São poucos metros, poucos passos, logo estou no banheiro e acendo a luz. Pisco rápido para me adaptar. Quero voltar a dormir, não quero sair de casa, não quero ir. Levanto a tampa do vaso: é branco como o teto, as paredes, a pia. Urino um jato amarelo claro e o jato de urina quer dançar dentro da louça. Depois, lavo minhas mãos e olhos meus olhos cansados no espelho. A noite não me fez qualquer bem: tenho a mesma face triste (e solitária…) de ontem. Respiro fundo, de olhos fechados, o ar parece me obrigar a tomar decisões, a ser forte, mostrar que devo prosseguir. Saio do banheiro, vou até a cozinha. Já não está tão escuro: deixo a luz do banheiro acesa. Na cozinha, acendo a luz, pego o filtro de papel e abro a cafeteira: é vermelha, um vermelho forte, mas pálido já pelo tempo de uso. Ao abrir a cafeteira, vejo que o filtro com o pó do café de ontem permaneceu ali. Retiro-o, jogo-o ao lixo. Coloco o filtro de papel novo na cafeteira. O tamanho do filtro é 102, o mesmo do filtro da cafeteira, ainda assim as bordas do papel ultrapassam altura da borda do filtro da cafeteira e isso sempre me atrapalha um pouco na hora de fechar a tampa. Às vezes a tampa se entreabre com a pressão do vapor e do tamanho a mais no papel. Pego a lata de café em cima do armário (é um pequeno pote transparente com tampa verde claro). Dentro tem um pequeno medidor: uma colherzinha plástica e pequena, abaulada, branca. Uso três ou quatro colheres, muito cheias, transbordando. Não é muito e, muitas vezes, o café fica fraco, mas isto acontece quando coloco muita água. Pego a garrafa de café. Garrafa verde como a tampa do pote de café, talvez um pouco mais escura, mas mesmo tom. Encho a garrafa de água, coloco esta água no reservatório da cafeteira e aperto o botão inferior e lateral esquerdo da máquina e uma luz laranja acende-se. A máquina começa a fazer barulho e rapidamente, eu sei, a água vai ferver e escorrer dentro do filtro e daí para o vasilhame transparente. Retorno ao banheiro. Estava frio, dormi de camiseta de malha fria de cor bege e um short de tectel preto com alguns desenhos brancos. Talvez dragões ou algum tipo de criatura marinha. Tiro a roupa. Primeiro a camiseta. Depois o short. Nu, olho para o alto e vejo se o chuveiro está com a chave seletora na posição inverno. Está. Ligo o chuveiro, pego o barbeador (verde escuro, três lâminas, vários usos anteriores) e um sabonete de tom amarelado, novo. Molho a mão na água quente, jogo-a no rosto. Esfrego o sabonete. Faço a barba. Movimentos descendentes, na primeira vez. Torno a lavar o rosto na água quente, torno a passar o sabonete e a lâmina, desta vez num movimento ascendente. Lavo o rosto novamente na água quente e, só então, entro sob a água para me banhar. Está quente. Não gosto, mas na outra temperatura estaria muito fria para o tempo que está fazendo. Toma banho e, debaixo do chuveiro, pego a escova e o creme dental. Escovo os dentes em vários movimentos confusos, como um ataque de epilepsia, sem seguir um único destino horizontal ou vertical. O creme dental me desperta mais do que a água do chuveiro. Termino de escovar os dentes, guardo a escova (marrom com vermelho e branco) e o creme dental. Pego a toalha que ficou na porta da noite anterior, seco meu corpo, menos meus pés. Depois passo o rodo pelo chão e empurro a água do piso para o ralo. Depois de me secar saio nu para o quarto (consigo ouvir o barulho da cafeteira e o café está pronto, porque não ouço o vapor, somente um gotejar…) e, não tivesse que sair, ficaria nu o dia todo. De volta ao quarto, acendo a luz e pego a roupa que devo – devo – usar.

            E repetirei estas palavras, e todos os milhões de outras que descreveriam o resto de meu dia, por todos os dias do resto de minha vida, numa rotina infinitamente e tediosamente previsível.

Passeio

          Entrelacei meus dedos aos dela e senti-os frios. Já era noite e a praça tinha luzes acesas, mas que de pouco serviam, perdidas e frágeis devido as sombras das árvores. Era a primeira vez que eu e ela, finalmente, passeávamos juntos, em público, num lugar tão conhecido por mim. Fechei os olhos e senti a brisa fresca que vinha das últimas ruas desta pequena cidade, quadro pálido em parede de reboco de minhas memórias infantis e juvenis.

        Caminhávamos lentamente, mãos dadas, indubitavelmente inocentes de nossos pecados. Senti o roçar delicado de seu vestido esverdeado em minhas pernas e, a dança daquele tecido, fazia-me tremer de paixão, desejo, alegria. Ela, finalmente, poderia ser minha companhia, aos olhos de todos, aos olhos da lua, aos olhos dessa praça triste e quieta. Olhando para baixo, encarei as pernas grossas e brancas dela e o vestido emoldurava com perfeição o que já era belo.

         Os dedos dela continuavam frios, por mais que eu os acariciasse, apertasse. Não era estranho este toque já que ela sempre era tão temerosa, sempre assustada com a vida, com o gosto do novo, o gosto de estar feliz. O medo, na verdade, era uma constante entre nós dois. Sempre receosos que éramos de sermos vistos, sermos descobertos, sermos crucificados publicamente por nossos desejos, nosso amor. Agora, isto no passado, eu estava aberto a ser feliz como havia sonhado, aberto para passear com ela sob a luz da lua e sob as sombras das árvores de minha história.

Não falei, tampouco ela, qualquer palavra. Era desnecessário, como tantas outras vezes foi. Sabíamos viver o silêncio de maneira que não nos incomodava e nossas palavras eram nossos desejos, o toque, o olhar, o gesto. Amei-a assim, sempre, no silêncio, no secreto, no indizível desejo carne-alma.

Como disse, caminhamos algum tempo, meus dedos abraçados aos dedos frios dela, a alegria apertando meu peito, o desejo por ela alimentando minha ilusão, minha existência. Olhei em volta e a praça continuava vazia, silenciosa, e desejoso, pensei em tomá-la em meus braços e possuí-la ali mesmo, em um daqueles bancos de praça, erguer seu vestido e estar dentro dela outra vez. Ao me virar à procura de seu olhar infinito e esverdeado, à procura de sua boca úmida e selvagem, encontrei-me com o vazio de minha existência e o infinito de meus fracassos: somente a praça morta e gélida existia ao meu redor.

Sombra

Nos últimos dias tenho pensado em morrer. Não em matar-me, pois resoluto como sou, é certo que já o teria feito. Penso em morrer, em estar morto, em não fazer mais parte do mundo como, claramente, já sinto que não faço. Sempre fui inapto para viver em meio aos outros, imperfeito demais para suportar-me, ainda assim, não vejo-me como uma pessoa má e cheia defeitos impronunciáveis. O dia amanhece, a noite o consome e é isso: o ciclo de minha vida. As coisas que um dia julguei serem prazeres (já que todos à minha volta diziam que eram…), hoje soam como tarefas, obrigações. A poesia, o nascer do sol, os animais passeando em fios de grama, as pequenezas que fazem sentido às crianças e aos felizes, perderam-se na trama indistinta das horas. As pessoas, que já possuíam o tom cinzento da apatia, hoje se parecem mais com cinzas que voam com qualquer brisa: indistinguíveis depois de perdido o calor, a chama. Tenho pensado, nos último dias, em morrer e sei que a inaptidão para este mundo me persegue desde sempre, desde quando soube que existia e não sei se descobri essa existência em um momento de felicidade ou de dor. Talvez no primeiro grito, ao conhecer o ar rasgando meus pulmões, ou na primeira paixão (Um brinquedo? Um livro? Uma pessoa?) desfeita. Talvez no primeiro amor. Os olhos castanhos de Raquel me olham pelo vidro da janela. Já não sei dizer se ela é feliz ou infeliz. Também não sei dizer se sou uma coisa ou outra. Os olhos dela me fazem sentir uma culpa profunda ao imaginá-los mergulhados em lágrimas, seu rosto desfigurado ao saber de minha morte. Talvez seja isso que evite que eu pense em me matar e mantenha meus pensamentos meramente em morrer. Alguns dias não consigo dormir e outros acordo aos gritos, aos prantos, encharcado em suor. Acordado ou sonhando penso que o momento de minha morte é doloroso ao extremo ou que, em algum momento, causarei dores terríveis a quem permanecer vivo. Não tenho controle sobre uma coisa ou outra. Não consigo, contudo, imaginar-me morrendo em um plácido leito, mesmo que vítima de alguma doença. Quase sempre minha morte vem, em pseudo-clarividências, em um absurdo de dor, sangue, gritos. Noutros pensamentos, são outros que morrem e eu tenho a culpa indesculpável sobre isso. Talvez este seja o pior pesadelo. Sei que não durmo. Pensando nestas coisas incontroláveis, sinto o medo infantil das sombras no meio da noite, meu coração a palpitar descontroladamente, o mau agouro dos pássaros noturnos. Do alto da janela transparente, Raquel acena e sorri. Olho as paredes brancas da casa emolduradas por um céu avermelhado de amanhecer e juro, por conta daquele sorriso, que conseguirei suportar mais um dia. Sei que minto. O máximo que conseguirei é usar a máscara insana da falsidade e esperar que minha morte chegue. Por mais que busque, não vejo sentido em coisa alguma. Por mais que tente, sinto sempre esse ranço, esse amargor debaixo da língua, esse aperto sob o esterno, essa dor que remédios não curam, que sorrisos não abrandam. Desisti de chorar há muito, muito tempo. Ainda assim, talvez lágrimas me acalentassem. E, ainda assim, não consigo chorar: meus olhos se enchem, mas as lágrimas não escorrem, prisioneiras dentro de mim. Não tenho mais sonhos ou perspectivas, esperanças ou preocupações. Não, não me preocupam dívidas, doenças, problemas. Sei que vão e vêm, como pêndulo, e eu, no centro de seu movimento, aceito que as coisas são meras repetições, que aquele momento, este momento em que estou, é a inércia. Alimento-me como uma máquina faria, faço as coisas que todos fazem, mas meus pensamentos são puro lodo e minhas vísceras parecem lutar contra mim. Raquel não se encontra mais na janela. Em seu lugar, minha mente imagina a sombra do que foi Raquel na janela e penso que, como tudo, Raquel também é um sombra. Também eu sou uma sombra. Não conheço, então, a luz ou de quem sou a projeção. A sombra de Raquel na janela é um tipo de refração do que Raquel foi em meu passado, observando-me da janela. Sinto que já morri há muito tempo. Muitos já disseram que a vida é dor e sofrimento, mas não sinto dor ou sofrimento. Só esta angustiante vontade de morrer. Raquel voltou à janela e ocupou o lugar em que antes estava sua sombra. Já não sei mais qual das duas existe de fato. Torno a olhar as paredes brancas, o céu avermelhado. Tudo exatamente igual, como sempre será. Tenho pensado e sentido uma vontade absurda em morrer.

O sonho de Olavo

Olavo sonhou com uma mulher desconhecida e acordou intranquilo. Levantou-se sentindo uma angústia pesada dentro de si e, por um momento, temeu que fosse o fim de seus dias, o fatídico colapso matutino do coração. Fez suas atribuições e atribulações diárias, sempre com aquele aperto intenso dentro de si, como se lhe faltasse algo, como se fosse uma pele viva sobre toda uma estrutura morta. A desconhecida do sonho perturbava seu dia, encobria seu sol. Olavo sentia que tudo era sombra: as pessoas eram as sombras de si mesmas, uma máscara de carne encobrindo demônios e santos, e isso lhe causou medo em encará-las e, com as poucas que teve de interagir, não passou de um monossilábico entrave no dia delas. Via as ruas, suas esquinas, seus prédios e calçadas, os carros estacionados ou em alta velocidade, os cães, as árvores: sombras da uma verdade impossível de ser capturada, sombras de outra existência ou de uma inexistência. Olavo seguia o dia com a sensação de que não conseguia respirar. Esquecia-se até, e quando seu corpo o obrigava, sugava o ar com tanta força que assemelhava-se ao afogado que se debate. A mulher desconhecida apertava suas costelas com unhas vermelhas, mas não era um aperto de maldade, tampouco suas unhas eram demoníacas. Ela apertava-o como se brincasse, como se sua pele pertencesse às unhas dela e tentassem retornar à sua raiz original. E, com estas mesmas unhas-pele, a mulher atravessava suas costelas até seu coração. E ele não sentia dor, nem a pressão da carne e ossos abrindo passagem. Depois, ela retirava seu coração e brincava com ele como se fosse uma bola de tênis: atirava-o acima e abaixo, fingia que o deixaria cair, fingia que o atiraria longe. Este sonho se impregnou nos olhos cansados de Olavo durante todo o dia e seu dia não fez diferença para o mundo, apenas para ele mesmo. Foi um dia maculado e Olavo, já no começo da noite, sentou-se na varanda e observou as folhas das árvores balançando, o céu noturno e sua inexplicável ausência de sentido. Olavo lembrou-se da mulher desconhecida segurando seu coração, já murcho e escarlate, e lembrou-se também de que ela sorria. E seu sorriso não era de maldade: era um sorriso de quem está feliz com o que faz, de quem encontrou sua função, seu destino. Olavo se lembrou do sorriso da desconhecida e chorou enquanto a noite derramava sua imensidão de sombras sob a inutilidade de seus dias.

Rascunhos

01

Silencioso e cansativo

o céu noturno

com nuvens beirando o ouro

parece aproximar-se desta terra

tediosa e ruidosa.

A única coisa que me vem à mente

é se o mamilo dela é rosado ou de tom marrom

como esta noite triste

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02

Todos somos perfeitos até que nos abrace a primeira loucura.

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03

Um trovão rompe a brisa.

E o inferno é isto: impossibilidade.

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04

Em nosso último encontro, inalei o cheiro dos cabelos dela e tinham o cheiro de sempre: açúcar mascavo e ternura.

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05

Os domingos, seus tédios e minhas lágrimas ocultas. Os domingos e meu cansaço: acordar cedo e sonhar, cansado antes das nove, que será diferente. Mas tudo é tristeza e desalento e quero chorar. Disfarço: o céu é mais bonito à noite. Deus, que não creio, observa. É um vento doce acreditar nessa paz divina.

E me resta o cansaço. Os domingos…

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06

Eu queria ter medo.

Não o medo palpável das coisas reais e certas; o medo da vergonha, do vexame, das dívidas, das traições. Queria ter esse medo absurdo que costumo perceber em alguns, talvez muitos: o medo das coisas incontroláveis, impalpáveis, indeterminadas. Medo de não ter controle ou medo de o ter. Medo de não sermos capazes de prever a hora em que uma microscópica forma de vida nos devorará. Medo de que a vida cesse sem que tenhamos abraçado nossos sonhos.

Mas a vida cessa…

Cessa e sequer existe, porque a humanificamos a nosso gosto, dando a ela nossas limitações, esperando que nos ouça, nos atenda, nos faça existir.

A vida: outro verme que nomeamos e esperamos que siga nossas regras.

Sequer nos ouve…

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07

Todos os pensamentos são inúteis.

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08

O calendário marcava: 13 de dezembro de 2019, sexta-feira. Ele memorizava a data enquanto o demônio, azul e purulento, entrava por seu olho assustado ao vê-la abraçar um homem que ele nunca vira antes.

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09

O cadáver cheirava a rosas.

Apareceu na margem do rio numa manhã de domingo e foi encontrado por um andarilho. Era um dia frio e o corpo não aparentava marcas ou ferimentos, mas tinha a pele branca, pálida, triste. O andarilho sentiu cheiro de rosas e, inicialmente, duvidou que pudesse ser o defunto, mas era. Sentou-se ao lado do corpo e ficou muito tempo sentindo o cheiro adocicado, suave, amoroso.

Em pouco tempo, dezenas de pessoas acumulavam-se em torno do homem com seu rosto ainda desconhecido e o cheiro de rosas invadia todos os narizes, todos os corações.

Desencantado e arrependido, o poeta estava em casa, escrevendo sobre um amor que optou em perder…

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História de amor

Diz, se dizia, que em festa de Deus, o diabo entra sem convite e é o que se sucedeu com Caudino Rocha sem mesmo seu conhecimento. Moço novo, de muita fé e pouco canto, dado a lida com gado e sem espaço pra balburdia outras em sua vida, tinha o semblante pintado com o sol de muitas tardes e sério como deveria ser peão naquele tempo que peão não tirava foto. Levava a vida como devia ser: respirando lento, olhando o sol nascer e a lida começar, comendo na hora da fome e apertando o terço que ficava do lado da cama e que foi deixado por sua vózinha – Deus a tenha – quando ainda era um menino. Se sabia ou não rezar não sei dizer, que sua voz de reza era só movimento de lábios quando de alguma quermesse, sem som nem assombro, como criança dormindo e trocando conversas e tretas com os anjinhos do sono. O que eu sei, e que se soube na época, é que era moço direito, sem arrevelia com ninguém, nem má palavra a se dizer, de si ou pros outros e, certo como chuva molha e depois seca, veio ele, Caudino, a conhecer Rosa. Rosa era diferente. Tinha nome de flor, certo por certo, porque não se era de dar nome das outras partes das plantas à quem nascia, que menino saindo da barriga é tudo santo, não tem escrito na testa que diabruras vai fazer depois, mundo afora. Tinhosa, mulher arredia e certeira nas botinadas que dava em cachorro de rua e cuspia depois de fumar e de beber cachaça. Já tinha sido mulher de outros tantos e não temia nem o santo, nem o cão, nem leão, nem leitão. Era uma mulher mais homem que muito homem e não lhe era defeito, era só Rosa sendo o que era. Mas cada planta seu vaso, cada cria sua lida, e era de se ver que não tinha sossego no coração dela, porque a ninguém dava valor, nem carinho, era só rusga e fragelo, xingamento e malfeitia. Que eu já falei, como fala alto tamanco na madeira, que não havia de dar certo, dois corações em batidas tão desiguais, viola de borracha não toca moda, mas desandou dos dois, Caudino e Rosa, toparem em olhar e carne no fim duma festa na fazenda do Tião Tequero. E deve que foi, porque nem eu, nem eles de certo souberam, tanta mistura de diferença que acabaram por se atentarem um pelo outro que Caudino passou a ter o olhar besta de quem se apaixona e Rosa o olhar besta de quem se apaixona. E tudo é flor se o canteiro for bem cuidado e ela, demasiada andeira, passou a gostar de ser bem cuidada, porque Caudino era zeloso até com vaca brava que avançava, quanto mais com morena de cangote cheiroso? Apertava ela com força onde quer que fosse, e aprendeu a entortar o olho, cíume bravo e besta, pra ela e pra quem beirasse. Bebiam, ambos e ao mesmo tempo, uma guia que descia rasgante pela goela, tiragosto pra abrir o apetite, e era só, sem abuso, nem desatino. Era pra ter sido vida boa, ela sossegou, ela desendiretou no que é bom pro viver, nem tanta reza, nem tanto quieto. Continuou sendo o bom marido que a boa mulher merecia ter e ela achou o que não sabia existir, afeto puro feito orvalho, merecedor de seu sossego e carinho, vida de esfrega pra trás, cada um no cada um, eles os dois pros dois. E viveram assim, dias, meses, luas, sóis e não tinha defeito de um que o outro não ajeitasse ou aceitasse e não tinha qualidade que não fosse sorvida feito menino bebendo leite. Ama um o outro de amor, amor mesmo, sem perseverança de um, nem sossego do outro, amava um o outro porque era isto que tinha em um pra dar ao outro. Mas, tempo passou, sossego no mundo é coisa rara que dura pouco e veio de aparecer, pra tirar sossego até de mim, sem convite nem aviso, o mamulengo abestado de nome Rodovalho. Carestia de nome besta, pra começar. Ele, que ninguém sabia até então, tinha sido homem na vida da Rosa, a antiga Rosa. Foi homem dela lá pra banda de lá, longe pra mais de semanas, e por cruel destino, encargo atroz da vida, topou de fazer entrega na mesma cidadezinha que Rosa vivia e, cruel, cruel mesmo que me chega doer os olhos de lembrar tanta desventura, topou com Rosa e Caudino antes da janta na cantina, na hora do vira copo tradição dos dois, pra abrir o apetite, e só. E vendo Rodovalho a mimosa flor, achou-a que assim assim vivia como dantes, abraçada ao copo, indo de leva e vai com quem lhe desse nas ideias que, coitada, não tinha. E Rodovalho, sem tipo nem modo, chegou como quem chega dono, puxando cadeira e pegando no braço, porque, decerto viu Caudino, novo, baixo, forte mas sem arrombos, sem carcaça que lhe desse aprumo, forte sim, mas forte escondido debaixo do pano, sem se mostrar, nem aparecer, forte pra lida do campo, mas sem experiência de briga. E Caudino, sério e bom, viu a flor, sua rosa, tocada por tal afrontoso e logo levantou e raiou e mostrou o olho do ciúme que aprendeu a ter e xingou. O outro, Rodovalho, malandro de estrada, sem modo, não afinou nem arrengou. Levantou e apontou o dedo na cara do menino, coitado, que nem moço posso dele falar mais, e de dedo na venta do menino, falou nomes e tresnomes, abrindo as porteiras e portalhas de tudo que é enxofre que no inferno há. O que sei que vi, depois da ladainha plena, foi que de nada adiantou o aparta-afasta que, cada um mais doido, um de amor, outro de safadeza, tapa foi, tapa veio e só viram, que eu mesmo não vi nessa hora, a luz que acendeu na cantina quando a faca subiu no ar e desceu rápida veloz. Daí ouvi só um ganido, triste, cruel, falar assim, mas era o que eu ouvi, ganido de cachorro novo quando em fome, e olhei lá, deitado, feito uma criança que a mãe segura, Caudino nos braços da Rosa ajoelhada e o banho, sangue, tripas, a pele do pobre peão a ficar branca e triste, perdendo pra sempre o sol. Ela chorava feita mãe que perde o filho, agarrava nos braços, gritava socorro, mas qual quem que ia? Todo mundo empurrando Rodovalho pra rua, muitos sem nem ver direito o que havia, que assucedia e, certo por certo, tal qual meu olho ainda vê e ainda fala minha boca, ficou somente eu e o pobre casal que se desfazia nas tristezas das tragédias más da vida. Olhei ela, bela e feliz até minutos atrás, empapada do sangue de seu jovem peão, enquanto ele, num suspiro sem ar, num puxar o que não se pode mais ter, ergueu o braço, falo e repito, que isto eu vi com estes olhos que só verão terra em breve, e, braço erguido, tocou o braço e o rosto dela com tal gentileza, tal ternura que eu nem percebi a hora que chorei. E ela, sentindo aqueles dedos novos e gentis em sua pele, soube certeza por certo, que ele se ia pra nunca mais e era o último instantezinho que ela tinha com ele. O desespero e o pavor se afastou dela como se passasse um relâmpago no céu, não chorou mais, nem gritou socorro. Acho, acho mesmo, que nunca mais chorou nem falou palavra alguma, aquela coitada. Em silêncio, baixou o rosto e deu o beijo final e se despediu do amor pra sempre. E não, completar história assim, é chover no encardido, estraga mas não limpa, que eu falei dos três, mas o que falo mesmo é de mim: o amor, eu sei, existe e eu vi, nesta vida traiçoeira e ladina de estrada, só ali, naquela hora de dor, naquele beijo final. Ali eu me apercebi de mim e do que me faltava, faltou, faltará sempre.

A alma

Abro minha pasta de rascunhos e encontro um arquivo intitulado “A ALMA” (07/02/2021, 07:42). Clico sobre o ícone e o que encontro é apenas o citado título, sem nenhuma linha de texto, nenhuma imagem que, eventualmente, tenha me inspirado. Internamente me pergunto sobre o que, à época, eu pretendia escrever. Impossível que me recorde. Também não tenho dons teológicos, não me arriscaria a definir o que não enxergo. Um tipo de ateísmo paralelo impregna minhas veias. Seria algum poema, algum tipo de mito grego? Poderia, também, tratar-se de um conto caboclo, com uma vizinha tendo tal alcunha,vivendo algum acontecimento amoroso ou arrepiante. Porém percebo, enquanto escrevo estas atuais linha (às quais manterei o mesmo título abandonado), que tenho uma sensação de falta e de desejo que me persegue. Às vezes suspiro fundo e abandono o texto, penso na mulher que amei, nas que desejei amar, nas muitas que desejei por desejar. Penso nas opções insanas que escolhi e nos momentos raros de sensatez. De tudo que me preenche resta sempre o vazio, uns olhos de infinito que, tal qual um Perseu que se venda, decidi não mais encarar (por amor à mim e a ela…), e uma tristeza que, às vezes me afoga, noutras acalenta-me. Agora, sentindo que é hora de terminar, sinto os olhos marejados e não sei o motivo. Olho o sol que entra pela porta e clareia a parede e recordo, em um suspiro, da pele branca e quente em que um dia aqueci meus dedos e minha alma.

Tempo

Felina, deslizava as unhas em minhas costas e eu sentia que rasgava-me a pele. Como vingança-carinho, a beijava com mais força e apertava meus dentes em seus lábios até sentir que poderia sangrá-la. Interrompia a dor e a olhava com ternura. Éramos a loucura e o precipício. No meio daquele dia quente e seco, o suor tinha a textura de plástico derretido e o cheiro de maças desidratando sobre a mesa, esquecidas sobre um velho cesto de vime. Ela queria ir embora e eu a apertava com força, num abraço ofídico. Era isto o amor que eu sentia: devorá-la para ser unicamente minha, para que convivesse na imortalidade de minhas entranhas e da minha memória. Eu nunca soube o que era o amor. Errava, também, em não saber que ela nunca tinha sido a presa. Sempre refém de suas vontades, eu deixava-me viver em prol de sua existência, transformado a mim numa ilusão, um reflexo do que ela era ou do que eu imaginava que via quando a olhava. No meio daquele abraço quente, no meio daquela tortura de desejo nunca saciado e da ânsia de gravá-la em minha pele, talhá-la em minha alma, minhas costas ardiam e ela, abrindo a porta do carro, se despedia enquanto eu roçava meus dedos nos fios de seus cabelos soltos. “Quem sabe outro dia…”, era sua frase perdida na inconsistência do tempo. Ia embora úmida, eu sei. Seu desejo era tanto quanto o meu, mas ela tinha mais correntes prendendo-a às coisas humanas: o certo, o que diriam, os santos nos altares, os olhares da infâmia. Depois, em mim, brotava uma tristeza sem fim, um fim de existência, um  silêncio-mágoa e nódoa. Ser feliz nunca esteve escrito em minhas linhas.

41

Não fui criado perto do mar.

Impossível imaginar-me a entender a vida em fluxos, o sonho como um horizonte infinito, a espera, à espera…

Sou dos ventos e da terra.

Entendo a vida como flor tola que nasce, os ensinamentos como frases de amor escritas na casca de uma árvore, o silêncio como o cessar da fala de alguém…

Entretanto, vi o mar.

Senti-me um inseto encarando Deus quando o mar rugiu à noite. Entendi o terror em seu estrondo e silêncio, ambos solitários, ambos infinitos.

Senti-me completo diante de sua calmaria quando o vi dançar nas pedras, brincar na areia, virar guache ao ser tocado pelo sol…

O mar, tão distante desde sempre, ensinou-me que sou incompleto.

E ensinou-me que posso ser feliz…

Viver

Traduzir o rancor em pigmentos e cobrir a pele da vida. Sangrar o ódio, a amargura, e delinear portões e portas intransponíveis. Olhar o céu, a vastidão completa, e imaginar que olho para baixo, para o vazio incompreensível e profundo. Mastigar as palavras, lâminas, fingir desprezo e calma, silenciar o explícito. Puxar, fio a fio, o desespero e esperar, silente, que chegue alguma hora que não desejo. Cortar as aparas, o ventre, a pele: deixar os ossos e, com eles, cavar a ideia triste e tediosa que tenho da felicidade. Olhar e não ver. Falar e não ser ouvido. Respirar e não viver. Crer e não encontrar. Amar e perder-se.